Os trem que o meu pai sabia [as pessoa]
OS TREM QUE O MEU PAI SABIA
Meu pai num sabia poca coisa não. Seja sabê fazê, ô mesmo sabê por sabê.
Iscola mesm’ êl’ só teve uns pocos mêis, quando era rapaiz, lá na casa do Otávio Professor (que já tinha murrido fazia muitos ano, quando eu iscutava o meu pai contá); tinha que levá uma pedra pra iscrevê, inveiz de caderno. Essa pedra... eu num sei que jeito que era, nem cum quê que iscrivia nela... agora deu vontade sabê... num sei se argum dia atinei de perguntá e se dipois isquici. Pode sê até que eu subesse, posso tê contado pr’arguma pessoa... e essa pessoa asveiz pode até me contá o que eu tinha contado pra ela. Minha lembrança é bardosa... uma hora eu lembro... ôta hora eu num lembro... lembro traveiz... torno a isquecê...
Fora esses pocos mêis de iscola, meu pai ganhô, num sei de quem, uma Aritmética, uma Geografia... um ôto livro, parece que era História da Independência do Brasil’, se num m’ingano. E quando tinha jeito, êle lia rivista Cruzero, Manchete e uns jornal’ que aparicia lá na Irondina, no Dico, e nôtas casa qu’ele ia tamém. Almanaque tamém, quando aparicia argum, era bão, falava munta coisa de muntos assunto, tinha charada, tinha munta coisa... Aquêl’s jornal’ que vinha imbruiano butina, lá da sapataria do Carlito, no Frutal’ ...Nessa sapataria tinha uma serra de carçado, acho que os mais dibaxo ia ino apudricia, sem tê jeito de tirá, do tanto que tinha ôtos incima; ôta hora a pessoa ixprementava um pé, asveiz agradava dêl’, mais num achava o ôto nem cum reza braba, tinha que largá de mão...ôta hora num sabia o preço... era discontrolado dimais... O bão do Carlito é qu’êl’ fazia butina de incumenda, num sei se inda faiz, nun sei nem se já morreu...as butina qu’êl’ mesmo fazia era bichareda! Além de num machucá os pé, adurava dimais da conta! Tinha ôta sapataria, agora num lembro do qual’ é que era essa ôta, que só vindia butina de carregação... num pagava a pena.
Ah! Mais eu tava falano era dos jornal’ que vinha imbruiano as butina, e dicerto imbruiano ôtas coisa tamém, qu’eu num lembro... Aquil’ tudo meu pai lia, e eu tamém lia, dipois que aprindi a lê. Tinha veiz que tava rasgado bem no assunto que a gente fazia mais inpenh’... Eu pensava: por quê que a butina num era maió?... se fosse uma pro Lazim da Quita, uma comparação... Parece qu’êl’ num tulerava carçá butina, purque num tinha sufrimento, asveiz tudo quanté butina apertava os pé dele... mais se fosse pra ele, era capaiz de tê vindo o assunto intêro, purque aí, vamo vê se num cabia!... Pudia inda num cabê direito os pé dele, a butina, mais cabê uma nutícia grande no jornal’ do imbrui, divia cabê.
Meu pai sempre deu conta de cunversá duns assunto que o resto do povo num intindia quais nada, e acho que é purisso que os ôto vivia falano qu’êl’ tava mei caduco; seno que nem munto véi êl’ num tava ainda... dipois é que eu fui intendê, quando êl’ ficô véi mesmo. Êl’ falava de cumunismo, guerra mundial’, rivulução de 30 e de 32... uns assunto de medicina que o Anézio primo dêl’, que era médico lá no Ríi de Janero, ixpricava e êl’ intindia... Além dos trem que ele lia, êl’ tamém cunversava cumas pessoa intindida, lá do Frutal, da Pirajuba, do Beraba... Tudo ele achava bão sabê. Gostava de cunversá c’as pessoa istudada, ô que dava nutícia de munta coisa. Aí ele ia contano pra nóis, de noite... lá na cuzinha... co’a lamparina lumiano mal-mal... até dá a hora de durmi... Mesmo dipois que os minino tinha ido deitá, inda dava pa iscutá mais-ô-meno a cunversa... parece que a cunversa ia passano purriba das trave... acho que num prucurava porta não...
Mesm’ achano ele caduco, quarqué um que pricisava midi um terreno, botá meia sola numa butina, fazê uma conta compricada... chamava o meu pai, que fazia satisfeito sem cobrá nada... êl’ era munto sirvidô... achava custozo era ocupá os ôto... e quarqué coisinha que fizesse pra ele, êl’ ficava deveno obrigação. Se êl subesse que um sirviu um dos fíi, numa pricisão, num sabia quê que fazia, divia obrigação po resto da vida, munto mais do que se tivesse feito o favor pra ele.
Meu pai sempre foi bicharedo pa matá charada. O tíi Geral’dino (tíi dêl’), que vivia mei por conta de charada, sem tê munto o que fazê, pelejava p’arrumá umas que imbasbacasse o meu pai... vinha com os “dô-lhe uma”, “dô-lhe duas”... Mais nem que pricisasse de quebrá a cabeça o di-intêro lá no sirviço, capinano no sol’ quente, ia ino êl’ dava conta. Uma ô ôta, as veiz êl’ largava de mão e perguntava a sulução, mais era munto difice acontecê.
Diveiz-in-quando, argun que tava istudano pa sê ingenhero, médico, ô ota coisa dessas adiantada, passava um problema (meu pai prununciava bem isprivitado: PRO-BLEMA) pa vê se êl’ dava conta de resorvê; acho que é pa vê se num dava, na verdade. Intão êl’ inchia umas par de fôia de caderno véi, ô oto papel’ quarqué (papel que vinha imbruiano pão, por exemplo, era bão pa iscrevê)... iscrivia com’s lápis que ia ficano piqueno e tava runh’ pos minino iscrevê (êl falava “tôco de lápi”)... fazia conta até num tê mais jeito, e dava o risul’tado certim; num lembro d’êl pidi burracha... só lápis... pudia sê caneta, intão, se tivesse... mais num custumava tê... Êl’ num abaxava pa problema não! Tinha também daqueles que num era de fazê conta, aqueles que parecia charada... que uns chama de problema de lógica. Esses num diantava lápis, tinha era de quebrá a cabeça até intendê a sulução. Eu achava bão quando meu pai cumeçava m’ixpricá aquelas conta custoza, dos total’ fal’so, purexemplo... das midida dos terreno c’aquélz divisa compricada, fazeno caracol’... Intendê, bem que eu intindia... só-que-tem qu’eu isquicia quais tudo. Aí eu cabava guardano mais era os caus qu’êle ia contano misturado c’a ixpricação das conta... e isquicia mais dipressa o principal’.
Êl’ intindia de música tamém: dos bemol’, dos sustinido, te transpusição... antigamente êl’ tinha ajudado a tocá... junto com o Fiíco e o Tãozim. Pelo que eu lembro, diz-que o tíi Fiíco tocava viulino munto bem, o tíi Tãozim era bicharedo no cavaquim... e o meu pai tocava acordion e violão. Penso que era bão pa tocá, mais quem tava contano era ele, intão num cabia a curuja ficá gavano o toco, aí êl falava que o Tãozim e o Fiíco era bão pa tocá, e que ele tamém ixprementava tocá. Uma veiz eu pidi pro meu pai m’insiná a tocá violão. Ai êl pegava o violão, afinava munto bem afinadim... pruziava... pensava numa música pa tocá... falava tanta coisa qu’êl sabia daquela música... lembrava das ocasião qu’êl tocô... que ôto tocô ela... tirava umas nota... me insinava um poquim... tocava ôta música boa, interinha... e assim ia ino... aprendê mesmo, eu num aprindi foi nada, mais foi bão... penso qu’êl achô bão tamém...
Meu pai sabia fazê munta coisa... fora as coisa que quais todo mundo sabia, igual tirá leite, vaciná bizerro, capiná, roçá, rancá toco, cortá de machado, coiê arroiz (tinha uns que era bão pa cortá arroiz mais num dava conta de batê, purexemplo), quebrá míi... Ah! Prantá de matraca num era quarqué um que dava conta; êl prantava, êl sempre teve matraca. Agora, pa prantá de prantadera, cum cavalo, a paciença d’êl’ era poca... aí êl’ arrumava um mais ajeitado pa prantá nu lugá dêl’.
Ih!... Mais era trem dimais que o meu pai sabia fazê... e ôto tanto qu’êl sabia por sabê, que tava na idéia d’êl’, qu’êl sabia contá ... sabia ixpricá... Isso, só dos qu’eu vô lembrano, que vai infilerano na minha lembrança até hoje... eu que esqueço mais que tudo... Mais purinquanto é isso qu’eu quiria contá.
(Florisa Brito)
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