RAPADURA [era assim]
Uma veiz por ano, pelo qu'eu lembro era no tempo de fríi, mandava muê a cana (quais tudo... ô tudo) lá no ingenh’ dos Virisso: pur’útimo era do Bastiãozim Virisso; inhantes, tinha sido do Zé Virisso, irmão dele; dipois de tê sido do Sô João Virisso, pai d'êlz; e já dipois de tê sido d’ôto Virisso que agora eu num lembro o nome e num cunhici, só vi falá. Ah, mais antigamente ainda, deve sê mêi no tempo do carrancismo, dizqu’o vovô Bejim tamém tinha ingenh’... isso eu vi falá, assim mêi por linhas travessa... por causa de argum caus qu’invurvia falá do ingenh’. Na verdade, num cheguei a cunhecê nem o vovô Bejim, nem casa qu’êl’ morô, nem nada...
Quando ia muê a cana, as veiz a gente pudia í, pra bebê garapa, cumê puxa... Nóis gostava mais era da nuvidade, do muvimento mesmo; aí arrumava discurpa que quiria bebê garapa; mais garapa tamém era bão, num resta duda. Além de rapadura, pudia fazê melado, que era bâo quando num açucarava. Tamém pudia fazê mané virisso. Esse nome num pudia falá perto do povo dos Virisso, pra num agravá... mais, se tinha ôto nome que pudia falá, eu num lembro... Ah! Quem sabe se Mané Virisso era aquele nome qu'eu num lembrei l'atraiz... As veiz ele pudia sê o pai do Sô João Virisso.
Na hora de levá a cana pa muê, se o tíi Fiíco tivesse de bâos acôrdo, ele dexava nóis subi no carro de boi... ele tinha medo de nóis caí, e tamém num era toda hora qu’êl’ tava cum paciença cum minino mêsm' não (já bastava os boi). Pra nóis andá no carro, tinha que ficá pra traiz das roda, porque, do rumo das roda pra frente, se Deus-livre-guarde caísse, com o carro andano, levava as breca mais da metade. Vontade que dava era de ficá impé lá no cabeçai, igual o tíi Fiíco fazia quando o carro tava mais vazíi, lá falano cons boi... mais nóis, pra subi no cabeçai, só mesmo quando o carro tava parado... os boi discangado... lá pro pasto afora...
Dipois de pronta, tinha que impaiá as rapadura pra guardá (Que paia era aquela? Será qu’era de bananera? Será qu’era de míi?)... Impaiava purquê ninguém guentava cumê aquil’ tud'uma-veiz. As rapadura impaiada ficava num girau por cima do fugão. Dipois duns tempo, as paia ia ficano insebada de fumaça e de picumã... mais, quando tirava a paia, a rapadura tava limpinha, prutigida, bôa pra cumê... Pudia cumê pura, cum leite, cum quejo quando tinha... Pudia levá uns pedaço pra iscola... pra roça... ô pudia fazê ôtas coisa, igual pé-de-muleque... e até café, se pricisasse, na farta do açuca – purque, pro café, quarqué um achava que o açuca era mió.
Pra cumê, ficava sempre um prato (era ismal'tado e pudia sê furado, num fazia diferença) cum rapadura e uma faca, incima da mesa... Pudia usá a ponta da faca pra tirá pedaço, ô intão, tinha umas rapadura qu’era mais face batê o cabo da faca no cantim e quebrá... tamém pudia rapá pra pô n’arguma coisa. Quando o tempo tava de chuva, a rapadura melava... e a faca inferrujava... Mais num tinh’importança não.
Quando penso in rapadura, lembro de munta coisa... munto mais do que essas... dum tempo que num era bão de tudo, mais dicerto inda ia sê... capaiz que ía... pudia passá a sê...
De veiz-in-quando eu compro rapadura, das que vende... Seja essas d'agora, cumo as qu'eu lembro, acho mei injuativa, doce dimais da conta... mais tem hora que é bão... e é bão pa saúde, pra quem num fô pruibido de açuca...
Só-que-tem que essas comprada... vem iscrito nome, indereço, munta coisa sem nicissidade... até vincimento. Ara! Se pricisa marcá! Quem num sabe se a rapadura tá prestano ô não... só de oiá pra ela! Num dá pa sabê é o gosto ixato dela, se ela é saloba, purexemplo, se é munto dura ô mole dimais - e isso ninguém iscreve. Intão, as rapadura comprada custuma vim cheia de remelexo, mais num tem nada daquilo q’eu lembro. Disimbruiô que seja, num passsa de rapadura.
Agora: otro dia comprei uma rapadura do Sô Francisco, sem nada iscrito, trazida lá do Norte de Minas, qu'êl falô que asveiz pudia acontecê de tê arguma abêia oropa no mei... purque élz fica rudiano os tacho e as gamela quando tá fazeno, e asveiz cai dento e ninguém nem num vê.
Eu lembrei qu'era assim mesmo. As abêia ficava rudiano até o ingenh' mesmo, quer dizê, ali onde punha a cana pra virá a garapa e o bagaço... era arriscado arguma até muê junto já duma veiz, fora as que pudia caí nos tacho e nas gamela dipois. Aí, na hora de cumê a rapadura, se achasse arguma abêia nela (intera ô pedaço, bem intindido, porque se fosse muída já tinha virado rapadura tamém), tirava aquele pedacim e pronto.
Intão, no fim, essa rapadura d'agora cabô ficano mió do que ôtas comprada, purcaus de num tê as coisera iscrita e purcaus da ixpricação da abêia oropa. De modo que, quando eu pego um pedacim pra cumê, mesmo tano arrumadinha na vasia... dô de lembrá do ingenh', do carro de boi do tíi Fiíco, do girau incima do fugão... dá de adoçá um poco os pensamento.
Cum certeza, os tempo agora é diferente... daquêl tempo que num era bão de tudo, mais inda pudia vim a sê. Porque vai ino, as ideia vai mudano... de cumé que as coisa é, ô que vai sê... ô vai dexá de sê mais adiante... E vai teno umas coisa... ô a farta delas... que rapadura ninhuma num dá conta de adoçá! Nem que tirasse lá do girau, disimpaiasse e cortasse c'a faca inferrujada dento do prato ismal'tado furado; inda num ia diantá.
(Florisa Brito)
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