A beira

A BEIRA

Florisa Brito

 

Foi ficando na beira de um córrego.

- Seria às margens de um riacho?

Uai! De verdade, por onde andei, vi muitos córregos. Vi suas beiras... e pirambeiras. Não me lembro de riacho nenhum, nem das tais margens. Por isso, digo que era córrego, e que era beira.

Aliás, ainda prefiro dizer que era corgo; porque é de corgo que tenho as melhores lembranças. A palavra córrego, desde que me foi apresentada, sempre me pareceu um pouco desagradável; parece escorregão. De corgo, eu gosto.

 Então, era na beira de um corgo; que também era beira de um caminho que atravessava o corgo; e era numa pirambeira, onde ia ficando aquilo que parecia ser uma pedra. Devido à quietude e ao silêncio, parecia que era pedra e que não iria a lugar nenhum por conta própria. Pedras, por elas mesmas, ficam onde estão; pode ser até para sempre. Não é da sua natureza caminhar, nadar ou voar; por conta própria, não saem do lugar.

- E rolar? Pedras rolam?

Eu acho que não é a pedra que rola, mas, alguém, ou alguma coisa, que rola a pedra – se rolar.

Dentre as pedras, muitas podem ser levadas... até para lugares muito distantes... sem que se saiba se queriam ou não. Se acontece de serem levadas, é porque se pretende que estejam em outro lugar, ou simplesmente porque se prefere que desocupem o lugar onde estão. Algumas, certamente, precisam antes ser quebradas, mas, para isso, sempre se dá jeito. Em todo caso, ser levada é diferente de ir por conta própria, por isso volto a dizer que, naturalmente, as pedras ficam onde estão; não vão a lugar nenhum.

Aquilo se parecia mesmo com pedra... de beira e pirambeira... aos trancos e barrancos, ficando onde estava. Inerte e sem voz. Para alguém que estivesse de passagem, a impressão era de que permanecia sempre no mesmíssimo lugar – a não ser por ocasião de alguma enchente, quando dava para ver que a água do corgo, transbordando, batia forte e deslocava aquilo um tantinho. Porém, na verdade, nem sempre o lugar foi o mesmo, todas as vezes; foram vários – é que são outros transeuntes que olham, ou pode ser um mesmo, que não presta muita atenção.

Houve também quem mudasse aquilo daqui para ali, por simples conveniência: por não querer isso aí onde estava – talvez atravancando a passagem –, ou por precisar disso mais para lá, quem sabe para descansar pesadamente em cima. Nenhuma mudança tinha sido por motivo importante. Ou seja, estando entendido que fosse pedra, não teria sido para aproveitar na construção de um castelo ou de uma ponte, por exemplo.

Sem dúvida, parecia pedra; e não era.

Apesar da imobilidade evidente, quem prestasse mais atenção – o que raramente acontece – poderia perceber que, mesmo discretamente e aquém de suas próprias expectativas, aquilo se movia, sim.

Era um ser vivo, afinal.

Asas, de fato, não lhe foram dadas. Por mais que apreciasse o voo dos passarinhos, quando olhava para o alto e os via; por mais que desejasse também voar, a verdade é que isso nunca teria sido possível.

Voz chamativa, que fosse melodiosa como a de um sabiá, ou potente como a de uma gralha, também nunca teve. Mal se fazia ouvir.

Mas não era pedra, como parecia. De fato, era um cágado.

Esse nome, cágado, nunca foi dos melhores. Frequentemente, provocava mal entendidos. Mas, sabemos que os nomes não costumam ser escolhidos por quem os carregará vida afora. Os cágados não escolhem ter esse nome. Como também não pedem para ser chamados de tartaruga ou de jabuti – isso, quando não estão sendo tratados como pedras.

Pouco importa. O que importa é que os cágados são naturalmente capazes de caminhar e de nadar – talvez por isso é que aquele acabou ficando na beira, do corgo e do caminho, onde tinha possibilidade de ir e vir, tanto na estabilidade do chão, como na incerteza da água; se bem que não parecia fazer tanta diferença, para quem permanecia, a maior parte do tempo, encolhido na carapaça, quieto, quase no mesmo lugar.

Mas, aquele era um cágado que pensava, o que é possível nas histórias; porque, fora delas, a verdade é que não sabemos se os cágados pensam ou não – como iríamos saber? Ele podia falar, também; e sua fala poderia ser entendida por seres de várias espécies.

Capacidade de falar, ele tinha. Falar mesmo, era o que raramente acontecia.

Essa maneira de ser, que estava mais para não ser, já durava tanto tempo, que parecia uma condição natural, como se fosse assim desde sempre e para sempre.

Entretanto, ele tinha sido um filhote irrequieto e comunicativo, de tal maneira, que estavam sempre recomendando que ele se calasse e ficasse quieto, pois queriam ter sossego. Com o passar do tempo e a insistência das críticas, foi se habituando a manter a cabeça escondida dentro da carapaça. Também acontecia de ser criticado, ou mesmo repreendido, por permanecer assim; pois, aparentemente, alguns ficavam incomodados por não verem a cabeça dele, talvez por ficarem na dúvida, se ela estaria quieta, como deveria, ou não. Entretanto, se já estava encolhido mesmo, bastava continuar do mesmo jeito – muito simples.

Sem que ele soubesse muito bem por quê – se teria sido pela inquietude do começo, que perturbava o sossego, ou pela quietude que veio depois, que o tornava muito sem importância, ou por qualquer outro feito ou defeito –, os outros da espécie foram se afastando, até que aquele cágado se viu assim: já sem ter ninguém mais próximo para incomodar, mas ainda quieto e calado, por força do hábito.

Acontecia, de vez em quando, de ele tomar a iniciativa de se comunicar: emitia algum som, ou meneava a cabeça; tentava uma certa aproximação; atrevia-se a falar. Porém, às vezes, era a uma pedra que ele se dirigia – uma pedra de verdade, e não um ser vivo parecido com pedra -; nesses casos, sua tentativa não dava nenhum resultado, naturalmente. Quando se dirigia a seres vivos, havia dois tipos de reação muito frequentes. Uma delas, era de se afastarem assustados, estranhando que “uma pedra” estivesse tentando se comunicar. A outra reação, era de reconhecerem que se tratava de um cágado pensante e falante, e de se acharem importantes demais para isso – pois não é difícil se sentir mais importante que um cágado -, portanto, respondendo com desdém; ou simplesmente não se dando ao trabalho de prestar atenção.

De qualquer forma, com tanta coisa mais chamativa naquela beira de corgo, que também era beira de caminho; e com a costumeira pressa dos que pretendem ir mais longe; a verdade é que o cágado, quando tentava se comunicar, mas, ao mesmo tempo, com receio de incomodar, costumava nem chegar a ser notado.

Não ser notado era o pior, porque exigia um esforço cada vez maior para continuar acreditando que era um ser vivo - mesmo que fosse um mero cágado, esse ser vivo. Enquanto ficava se parecendo com pedra, e muitos acreditavam que fosse mesmo, nem por isso ele se tornava pedra; e também não estava se disfarçando de pedra, de propósito. Por isso, ficar ali, ele ia ficando; mas, bom, não estava.

De vez em quando, o cágado ensaiava uma decisão de ir embora dali; enquanto ensaiava e analisava, acabava acontecendo alguma coisa, que podia ser importante ou não, que o fazia adiar, a cada vez. Bastava que, naquele instante, precisassem de sua carapaça para descansar em cima, por exemplo. Ele se esquecia que, para isso, havia pedras, que nem pensando em ir embora estavam, e que poderiam cumprir essa função com menos incômodo para elas mesmas. Ele ensaiava... ensaiava de novo... e ia ficando.

Existia caminho, por onde muitos iam, tanto num sentido como no outro. Entretanto, um cágado não teria muitas chances nessa via, repleta de viajantes muito ágeis e pouco gentis. Isso, ele já havia compreendido, porque prestava atenção no que acontecia, não só com ele mesmo, mas também com outros seres.

Restava a opção da floresta, que estava bem próxima, sobre a qual sempre pensava e aonde nunca ia.

Então, numa noite muito chuvosa, a água do corgo foi avançando sobre a pirambeira onde o cágado ficava. Quando a água encostava e começava a subir, ele, que era capaz de nadar, mas parece que nem sabia disso, pois nunca praticava, ia recuando um pouco mais; porque também não queria ser levado por água abaixo. Muitas enchentes já haviam acontecido antes, mas, dessa vez, a força da água parecia imensamente maior; ou, talvez, sua habilidade de se manter firme estivesse menor agora. Seja como for, à medida que a força da água o ameaçava, ele ia recuando... recuando... recuando... de tal forma que a pirambeira, que nunca tinha sido mesmo espaçosa, foi se transformando num risquinho de nada, que não cabia mais do que o tamanho de um besouro; e ele não conseguia ser um besouro, por mais que vivesse empenhado em ocupar pouco espaço, ou nenhum, na tentativa de não invadir espaços alheios.

Depois de um tempo nesse esforço contínuo de recuar - porque o recuo também é um movimento que consome energia -, o cágado foi ficando muito cansado; e talvez por causa do cansaço, foi ficando muito insatisfeito com aquela situação. Até então, suas insatisfações costumavam ser muito discretas. Por exemplo, nas raras ocasiões em que sua cabeça estava visível, ele a escondia imediatamente na carapaça, quando precisava cerrar os dentes de raiva.

- Cágado não tem dentes!

Que seja! Tem que haver alguma coisa nessa boca, que sirva para quando está com raiva.

Naquela situação muito desconfortável de tentar não ir por água abaixo, nem dava para esconder a insatisfação dentro da carapaça, como das outras vezes. Assim, visivelmente insatisfeito, o cágado começou a pensar, ainda muito indeciso no início, que ia apenas esperar o dia clarear e, quando enxergasse pelo menos um palmo diante do próprio nariz, ia tomar a direção da floresta; que sempre esteve perto, mas aonde ele nunca tinha ido.

Esperar o dia clarear... Ah! Se ele soubesse como seria interminável aquela escuridão! Se ele soubesse, teria tentado encontrar alguma estratégia que pudesse funcionar no escuro. Teria tentado, ao menos, pensar em algum passatempo que desviasse sua atenção do tempo que empacava. Tinha que não saber, pois, se soubesse, sua energia teria se esgotado só em pensar.

Cansado, contrariado, e recuando ainda, esperava a claridade; que não tinha pressa nenhuma de chegar. Recuava e esperava o momento propício de sair daquela beira de corgo e de caminho; o momento de se deslocar para a floresta. Como seria lá? Isso, ele não sabia, mas, por causa de tudo que já sabia sobre a pirambeira, havia finalmente decidido sair de lá.

Foi assim, nesse exercício de recuar e de se aborrecer, que a claridade finalmente foi encontrá-lo. Clareou: hora de olhar por onde ir. Ao mesmo tempo, quem finalmente recuava agora era a água, reencontrando, aos poucos, o seu próprio lugar; o que não interferia na decisão tomada, pois, o que as dificuldades dessa longa noite fizeram, foi ajudar o cágado a compreender o quanto ele precisava de mudança. Sim, porque, se ele esteve a ponto de ir por água abaixo numa noite chuvosa, foi porque suas forças estavam debilitadas, devido às condições daquela vidinha na beira.

Olhando ao redor para encontrar o rumo da floresta, enquanto, da enchente, ia ficando apenas as fortes marcas de sua passagem, o cágado percebeu o quanto tinha se afastado do lugarzinho onde costumava ficar - quase se podia pensar que era o lugar dele; até ele mesmo chegou a ter essa impressão algumas vezes; mas, não dá para estar em seu próprio lugar, se aí não se puder ser quem é. Tinha se distanciado de lá, de todo modo, não por livre decisão, mas em consequência da prova de resistência a que fora submetido, quando se recusava a ir por água abaixo. E agora, vendo que tinha saído do lugar, o cágado não se importava de saber onde estava; queria era saber por onde ir para chegar à floresta – isso tinha ficado muito bem decidido no decorrer da aflitiva noite.

Pois bem: como ir para a floresta agora? Se ainda estava vendo o corgo à sua frente, precisava mudar a direção do seu olhar; até um cágado sabia disso. Então, virou-se para o outro lado e viu... que a floresta já estava ali. A verdade é que a distância nunca tinha sido grande mesmo, a não ser na perspectiva de um cágado. Essa pequena distância, o cágado tinha percorrido sem perceber, enquanto recuava por causa da enchente. Assim, em vez de chegar nos limites da floresta andando em frente, ele chegou enquanto andava para trás. Agora, não precisava ir, porque já estava lá; bastava entrar – e entrou.

Finalmente, aquele cágado entrou na floresta, depois de ter passado tempo demais na beira: de um corgo onde não nadava; e de um caminho por onde não seguia. O primeiro passo para uma nova existência, foi ter saído; mesmo que de um modo inesperado, isso aconteceu. Na floresta, a movimentação e a permanência mais aleatórias, sem muito destaque para algum caminho ou lugar, parece ser, para o cágado, um bom começo.

Depois...

Sobre a existência na realidade da floresta... o que vem a ser real depois do sonho... o que sobra... o que falta... até onde um cágado pode se embrenhar aí... Bem, isso já seria outra história.

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