DESENLACE
DESENLACE
(Florisa Brito)
Não era muito longe daqui, nem faz tanto tempo; mesmo assim, ninguém mais sabe, nem queria saber. Ao redor, existiam cercas-vivas admiravelmente densas, espinhosas, eficientes e nada ornamentais. Destacavam-se, em altura, de outras cercas vivas ou mortas que se pudesse avistar, ou de que se tivesse notícia. E afora aquilo que poderia ter havido lá fora, ali dentro, que não parecia ser dentro tanto assim, uma menina sem nome, por menos que fosse percebida, existia... e prestava atenção... pensava... no que havia, no que sobrava, no que faltava.
Entrementes, entre as cercas-vivas, existia um pássaro, também sem nome, dentro de uma gaiola; ou existia uma gaiola com um pássaro dentro; pois restou por saber qual dos dois prevalecia nessa questão de existir. Na claridade dos dias comuns, o que se via muito bem era o pássaro, que estava com uma gaiola sem importância em torno dele; uma gaiola quebradiça, boba; um aramado efêmero; uns rabiscos que faltava apagar. Mas quando certos raios intensos batiam lá, eram muitos os reflexos, a gaiola adquiria um brilho ofuscante e, assim, ficava bem difícil continuar enxergando o interior.
Fosse como fosse naquele tempo e lugar, o ponto já não é mais o pássaro, nem a gaiola; nem mesmo a cerca-viva. Aqui e agora, a menina é o pontinho, que esteve pingado lá.
E como era essa menina ou como deixava de ser? Ela tinha uns olhos que não poderiam ser azuis, nem verdes, mas embirraram de não ser nem mesmo negros, como os olhos de alguns, como aqueles que davam de parecer bilocas pretas, novas e limpinhas. Assim ficaram aqueles olhos: não sendo verdes; não sendo azuis; não sendo negros; plantados fundos no rosto; e tendo um jeito profundo de olhar. Os cabelos eram negros e, deixados ao deus-dará, chegaram a ser longos, formando umas ondas imprecisas. Acho que esses traços são suficientes para dar uma ideia; penso até que nem precisava, pois “o essencial é invisível para os olhos”[1]; mas essas aparências, que não têm muita importância por si mesmas, parece que são úteis para os registros na lembrança.
A menina movimentava-se como era possível, no espaço que existia dentro daquelas cercas, ou melhor, nos escassos intervalos ocasionados por descuidos da vigilância – movia-se nas lacunas entre os impedimentos. Enquanto isso, sonhava com o momento de percorrer outros caminhos, andar por lugares abertos – mesmo não enxergando nenhuma abertura naquele cercado. Em suas idas e vindas, avistava aquele pássaro, envolvido por aquela gaiola, e ficava imaginando como devia ser horrível para ele, sem poder se movimentar nem mesmo dentro dos limites cercados, como ela podia; ainda mais que ele tinha asas para voar até por cima das cercas e ir aonde bem entendesse (a não ser por causa da gaiola). Era bem verdade que ela nunca via as tais asas abertas, mas supunha que fosse por falta de espaço dentro da gaiola.
Depois de certo tempo, já nem era por acaso que a menina percorria trajetos próximos ao pássaro; tornou-se um agradável hábito, talvez até uma espécie de obrigação, mesmo que ela só pudesse admirar sem chegar muito perto, evitando os espinheiros que havia nos arredores. Também não parecia por acaso, o gorjeio que ela sempre ouvia quando passava. E assim, entre idas e vindas, ela foi tomando coragem de atravessar os espinheiros e aproximar-se cada dia um pouco mais. À medida que chegava mais perto, apreciava ainda mais aquela figura alada e sua voz melodiosa. Também lamentava um pouco mais a falta de liberdade, pois nutria a expectativa de conviver com aquele pássaro – não para tê-lo a seus pés; não para segurá-lo em suas mãos; não nas limitações daquele lugar murado. Almejava estar com ele na leveza de espaços abertos, que permitem os encontros entre uns que, tendo asas, enxergam os que caminham no chão; e outros que, com os pés no chão, estão sempre direcionando seu olhar para o alto.
Às vezes me pergunto, hoje em dia, por que aquela menina insistia no mesmo percurso, em vez de trilhar outros caminhos que pudessem, quem sabe, possibilitar muitas outras descobertas e alegrias – e me respondo que ela, ao que parece, deixava de olhar para si mesma e para o que poderia ir buscar, porque se preocupava com umas asas que via, fechadas.
Com o passar do tempo e devido a certo desleixo, a cerca foi ficando desgastada e começou a ter brechas. Eram pequenas, no começo, de maneira que permitiam apenas que a menina esticasse o olhar para o lado de fora, o que já era uma grande vantagem, mas não dava para atravessar por elas e sair. Assim, enquanto passava uma parte do tempo olhando pelas frestas da cerca-viva, ela prosseguia com seus trajetos habituais ao redor daquele pássaro, esforçando-se por abrandar os espinheiros e imaginando maneiras de livrá-lo daquele mundinho apertado. Até que, certo dia, percebeu que havia uma parte da grade que não estava fixada firmemente, mas apenas encostada, de tal forma que dava a impressão de que fechava, mas poderia ser afastada com algum impulso; entendeu que aquilo poderia transformar-se numa passagem. Certamente, quem deveria usar a passagem era quem estava dentro, e não o contrário.
Então, a menina puxou a grade frouxa, que se abriu, e mostrou ao pássaro que ele já poderia sair e voar, não apenas nos limites cercados, mas para mais longe, se quisesse; mesmo que isso significasse que ela poderia perdê-lo de vista; porque ela, que não tinha asas, não cabia nas frestas das cercas-vivas, por mais que se encolhesse; nem tinha pernas de grilo para saltar por cima. A menina explicava, insistia, chamava... quando ficava cansada, andava a esmo... depois voltava e insistia. Algumas vezes, o pássaro saía um pouco da gaiola, mas ficava ali por perto, sem se afastar e sem voar, depois voltava para dentro. Outras vezes, ele ia um pouco mais longe, não voando, nem mesmo caminhando, mas arrastando os pés no chão; o que era bem estranho, porque não havia nada aparente, visível, que o impedisse de movimentar-se à maneira dos pássaros. Talvez ele tivesse ficado tempo demais, desde muito novo, privado da liberdade e do espaço, de forma que não havia aprendido a usar as asas que a natureza lhe dera.
Cansada dessa lenga-lenga, a menina passou a prestar mais atenção às frestas da cerca-viva: talvez tivessem evoluído, talvez ela tenha enxergado melhor, pois percebeu que poderia apoiar-se nesses buracos, escalar a cerca e sair dali. Assim, com grande esforço e com os arranhões inevitáveis, deixou para trás o cercado e saiu a percorrer outros trajetos.
Tempo passado, peripécias vividas... Certo dia, de forma inesperada, sem que a menina perguntasse, alguém lhe disse que, passando pelas imediações daquele lugar de onde ela viera, teve notícia de que aquele mesmo pássaro vivia muito tristonho, lá, cercado pelos espinheiros antigos e por outros mais – que ele parecia esperar por quem fosse resgatá-lo daquela existência angustiante. Por mais confusos que fossem o percurso e as razões dessa mensagem, de todo modo, ela teve um efeito poderoso de atiçar uma brasinha encoberta no coração e reacender uma chama que parecia extinta. Foi assim que a menina fez um difícil caminho de volta e viu-se novamente próxima às cercas-vivas – que estavam parcialmente mortas, apresentando enormes vãos.
Ao adentrar, foi possível perceber que as cercas poderiam mesmo ser deixadas a apodrecer, porque os espinheiros tinham logrado colonizar de forma muito eficiente todos aqueles espaços, tornando o ir e vir pesado, quase absurdo. A menina seguiu em frente, com coragem, boa disposição, sacrifício; e certa dose de estupidez que as circunstâncias impunham. Avistou o pássaro, que estava mesmo quieto e silencioso, mas, quando a viu, entoou um canto melodioso e fez um aceno com as asas. Foi um momento encantador, quase encantado, quando pareceu que cada um e cada coisa encontraria o respectivo lugar, serenamente; foi um breve momento.
Mais uma vez, a menina – acreditando que agora o resultado seria diferente – escancarou a porta enferrujada e frouxa da gaiola, que estava fechada novamente, fosse por obra de alguém ou por acaso; e acenou para o pássaro, que nem demorou muito a sair, como se já estivesse mesmo aguardando esse momento. Porém, antes mesmo de iniciar qualquer voo, ele começou a olhar insistentemente para um galho, onde estava pousado um gavião-pinhel, que piava forte e vigiava, sem sair do lugar. A menina, diante daquela situação, insistia suavemente para que o pássaro do chão voasse para outro lado, para longe do gavião. Mas a voz da ave de rapina exercia um estranho poder sobre o pássaro do chão.
Foram momentos breves de tempo transcorrido, porém, muito angustiantes para aquela menina, que, nesse retrocesso pelo qual enveredara, tivera a expectativa de desencadear algo precioso. Confusa diante daquela cena, ela chegou a duvidar das asas de seu velho conhecido; começou a pensar que poderiam ser meros apêndices. Todavia, de repente, e pela primeira vez, ela pôde ver aquelas asas abertas e o pássaro voando normalmente, como se aquilo não fosse novidade nenhuma. E sem demora, ele pousou no mesmo galho em que estava o gavião-pinhel. Instantes depois, via-se o pinhel levando no bico o pássaro sem nome, ambos desaparecendo de onde a vista alcançava.
Tal foi a perplexidade da menina, que ela ainda tentou correr em direção ao que via, para alcançar (absurdo) ou para compreender (bobagem) – tentativa que lhe deixou muito ferida pelos espinheiros do lugar, tendo restado feias e doloridas cicatrizes, ainda doloridas. Mas depois do assombro, as impressões foram se modificando, uma após outra: antes de tudo, veio a certeza de que não havia mais nada a fazer naquele lugar, nem sobre aquele assunto. Mais tarde, feito o clarear de um dia comum, a menina teve que reconhecer para si mesma, e às suas próprias custas, que toda a sua expectativa e todo o seu sacrifício em relação àquele pássaro, que ela queria tanto ver feliz, não passou de um grande equívoco; um mal entendido; tremenda perda de tempo; perfeito vexame, afinal – quixotesco!
E todos as cercas-vivas, os espinheiros, as grades enferrujadas... tudo isso nunca passou de cenário. Sabe-se lá se algum dia aquele pássaro realmente teve ânsia de voar livremente, a não ser na percepção daquela menina de olhar profundo. Por fim, nem foi possível saber se o gavião-pinhel participou como predador ou como parceiro de jornada; se foi oportunista ou oportuno. Quanto ao papel da menina sem nome, aquilo durou tempo demais, é verdade; mas, por sorte, teve que não ser para sempre e, só por isso, não teve que ser para sempre.
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[1] O Menino Príncipe - Título original: Le Petit Prince (Antoine de Saint-Exupéry), traduzido por Florisa Brito.