Entre ruídos

ENTRE RUÍDOS

 

   Um dia barulhento qualquer.

   O fluxo intenso de ônibus, que piora em determinados horários, com os estridentes ruídos de freios na parada, e depois o arrastar pesado na saída... e tudo se repete no semáforo a poucos metros, que parece sempre ter fechado. De vez em quando, uma moto envenenada, empesteando o ar e envenenando o humor de quem não está no clima. Buzinas... todos os tons, para todos os gostos e desgostos. E boiando na fervura desse caldeirão, as sirenes: polícia... bombeiro... ambulância... algumas vezes em sequência e nessa ordem.

   Mas nada supera o show dos alarmes que disparam, quase nunca por tentativa de furto e quase sempre com o motorista muito distante... e vai ficar tocando... de vez em quando, um breve intervalo e recomeça... e continua... e a bateria não acaba nunca.

   Há também os vendedores de sombrinha e de tantas outras coisas, que querem ganhar no grito... Vende-se aí quase todo tipo de peixe; se bem que, peixe mesmo, não. Entre as bancas, um homem vestido a caráter passa as horas brandindo um livro grosso, fechado e de ponta-cabeça, anunciando condenação em massa, e arrotando o privilégio de uma salvação seletiva por critérios duvidosos. Ao menos os vendedores de piqui não precisam fazer barulho, porque o cheiro indiscreto da fruta faz seu próprio anúncio.

   Ah! E as manifestações! (Porque a praça é do povo.) Meia dúzia de povo ali, muitas dúzias de policiais... e muito mais povo trabalhando, passando, engolindo esse barulho todo.

   Um dia barulhento qualquer.

  Então, sobre esse fundo caótico, um sabiá, camuflado entre os galhos de alguma dessas árvores, dispara a cantar... e insiste... mesmo que quase ninguém perceba... mesmo que a maioria das pessoas, caso chegue a ouvir, pense vagamente tratar-se de algum passarinho (fazendo o quê, ali?)... Quantos ouvem esse canto, mesmo entre os que não estão trancafiados em seus carros frescos ou em suas salas frias? Dos que ouvem, quantos sabem tratar-se do gorjeio de um sabiá? E quem se importa?

   Lembro-me de meu pai, quando dizia que o sabiá cantava adivinhando alguma coisa. Penso no que poderia estar adivinhando esse sabiá insistente, que continua com seu canto, nesse contexto hostil.

   Pouco mais tarde, ao me desviar um pouco da rota de costume, avisto um outro lado da cidade, e o que vejo? Um arco-íris espetacular, como não via há muito tempo.

   Penso que meu pai estava certo, afinal: o sabiá cantava, desta vez, adivinhando o arco-íris.

(Florisa Brito)

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