Por linhas e entrelinhas de O Menino Príncipe: conjecturas. 1 a 4

POR LINHAS E ENTRELINHAS de “O Menino Príncipe” - conjecturas.

(O MENINO PRÍNCIPE é tradução, por Florisa Brito, da edição francesa - Gallimard - da obra Le Petit Prince, de Antoine de Saint-Exupéry.)

1- COMENTÁRIOS INICIAIS

O que almejei ao traduzir “Le Petit Prince” foi uma expressão equivalente do texto em nossa língua, que buscasse, não só transmitir a história que é narrada, mas também exprimir, tanto quanto possível, a maneira como o autor a narrou. 

Ao formular estas conjecturas, não tenho pretensões críticas, analíticas ou interpretativas; minha proposta poderá ser entendida como menos pretensiosa que isso; ou vista como mais pretensiosa ainda, pelo fato de não buscar sustentação em teorias ou em opiniões supostamente abalizadas.

Apresento uma perspectiva pessoal, simplesmente; sem me preocupar com a eventualidade de vir a corroborar ou a confrontar, em quaisquer aspectos, pontos de vista porventura existentes.

Pretendo apresentar tópicos baseados em pontos do conteúdo, tomados em sequência aleatória. Em certos casos, alguns pontos poderão estar interligados num mesmo tópico.

2- UM OLHAR PANORÂMICO

O eixo central da narrativa é a permanência forçada de um aviador (o narrador) no deserto, por oito dias, onde ele conhece o menino príncipe e suas histórias.

O texto é permeado de metáforas, reflexões, sátiras, bem como de algumas chaves para a própria leitura; na dedicatória, por exemplo, há certo teor de introdução.

Assim, todas essas histórias que aparecem no livro, ou seja, aquela central e as demais que a integram, veiculam mensagens, que compõem uma (ou mais de uma) mensagem mais ampla. Tais histórias emanam de duas dimensões – o mundo interior e o mundo exterior.

Em personagens, lugares, coisas (o avião, o motor, os desenhos, o poço...) e fatos narrados, sempre se pode vislumbrar uma dimensão metafórica.  

Percebo que o enfoque da obra é a sensibilidade humana: a sensibilidade atuante, a ser valorizada; a sensibilidade entorpecida, a ser despertada; e a sensibilidade ferida, a ser consolada.

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3- OS DESENHOS NÚMERO 1 E NÚMERO 2

Neste tópico, em vez de falar sobre o personagem principal (ou sobre a raposa etc.), quero olhar para o narrador. Aos seis anos de idade, ele ficou admirado com o que vira num livro e quis impressionar as pessoas grandes, desenhando pela primeira vez e mostrando a elas o desenho. (O termo usado pelo autor não correspondente a “adultos”, mas sim, dessa forma ambígua, a “pessoas grandes”.) A criança perguntava se o desenho lhes causava medo; porque representava uma jiboia digerindo um elefante. Entretanto, aquelas pessoas respondiam que não iam ter medo de um chapéu; pois era isso que viam.

 

O desenho, que é mostrado no livro, representa razoavelmente a cena imaginada: é possível visualizar o contorno que lembra um elefante; há um olho indicando a cabeça da jiboia; se ela não aparece enrolada ou em posição sinuosa, como costumam ser as imagens de cobra, é por causa do elefante que engoliu, que atrapalha enrodilhar ou mesmo movimentar. Não resta evidente tratar-se especificamente de uma jiboia; poderia ser igualmente uma sucuri, por exemplo. Também não podemos ver claramente um elefante, mas, afinal, não seria possível, porque ele está dentro. Por outro lado, também não é claramente um chapéu, como as pessoas grandes viam; lembra vagamente algum tipo de chapéu.

 

Entre o que a criança queria que fosse e o que as pessoas grandes pensavam ser, havia a interferência daquilo que tinha mais importância em cada caso. De qualquer modo, o que interessa, nessa história, não é o desenho em si, que poderia ser qualquer outro que propiciasse desdobramentos semelhantes.

 

Ao perceber que não compreendiam, o menino fez outro desenho, mostrando a jiboia transparente e o elefante visível dentro dela. Assim, como poderiam pensar que era um chapéu? Então, ao que tudo indica, as pessoas entenderam o que era; mas não aprovaram, pois recomendaram que o menino se dedicasse a coisas mais importantes. Nota-se uma indiferença, por parte das pessoas grandes, seja em relação ao que a criança quer expressar, seja em relação à atividade de desenhar, tida como pouco importante.

 

Talento e escolha de carreira não é o que mais importa na história.  Se o primeiro desenho tivesse sido compreendido, ou se o segundo tivesse agradado, o menino não se tornaria um pintor por causa disso: estaria à vontade para fazer outros desenhos; poderia demonstrar talento ou não, ao longo tempo; poderia optar por essa carreira ou por outra. O que sobressai nessa situação é, por um lado, a displicência do olhar, que enxerga apressadamente algum modelo, com base no repertório que já tem pronto na mente. Por outro lado, a falta de empatia com o que é importante para o outro.

Não por acaso, o desenho que o menino quis conservar foi o primeiro, que era significativo para ele. O segundo não era uma expressão autêntica; era um esforço para se fazer compreender. Pela vida afora, quando tinha uma boa expectativa, mostrava o desenho número 1, como um teste; mas sempre lhe respondiam que era um chapéu; continuavam enxergando de acordo com suas experiências antigas, sem atualizá-las.

 

Mostrar o desenho para saber o que enxergam nele, seja uma atitude real ou simplesmente uma metáfora, nada mais é do que a tentativa de “conversar de verdade”, na esperança de deixar de ser solitário num mundo dominado por superficialidades. No entanto, só há uma mudança nesse padrão – de não ter com quem conversar de verdade, de não encontrar quem entenda o desenho número 1 – quando o narrador faz um pouso forçado no deserto e se encontra distante do mundo habitado.

 

Ao encontrar o Menino Príncipe (chamado de “pequeno príncipe” em outras traduções), depara-se com a insistência para que desenhe – um carneirinho. Desistira de desenhar havia muito tempo, desencorajado pelo fracasso de seus dois primeiros desenhos. Mas, devido à insistência, faz novamente o desenho número 1. O Menino Príncipe, que queria o desenho de um carneirinho, rejeita esse da jiboia que digeria um elefante, mas compreende muito bem o que ele representa, sem necessidade de nenhuma explicação. Ou seja, desta vez, o olhar não é displicente: é capaz de enxergar o inesperado. O desenho que o Menino Príncipe quer é bem específico, mas isso não o impede de compreender cada um dos que lhe são mostrados e de explicar por que eles não lhe servem – isso é empatia; conversar de verdade.

 

Se o Menino Príncipe e o deserto são, no livro, realidades do mundo físico ou não - essa já seria outra conversa. 

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4- ERAM PLANETAS OU ASTEROIDES?

O narrador refere-se ao lugar de onde o Menino Príncipe teria vindo, como sendo um certo asteroide; e também informa que são asteroides, os lugares que o Menino irá visitar antes do planeta Terra. Entretanto, no decorrer da narrativa, todos esses asteroides são chamados de planetas. Existe ainda um trecho que diz: “o planeta de onde vinha o Menino Príncipe é o asteroide B-612.”

Percebe-se, assim, uma indiferença quanto às designações específicas de asteroide e planeta. Não seria por acaso, pois nada parece ser por acaso nesse livro; nem seria por displicência, pois o autor, em dado momento, diz o seguinte: “não gosto que leiam meu livro com displicência” – suponho que não ia ser, ele mesmo, displicente ao escrever.

Vale a pena refletir sobre cada um daqueles asteroides-planetas, aqueles lugares fora da Terra, aos quais a história se refere: o lugar de onde o Menino Príncipe havia fugido (que mal chegava a ser maior que uma casa) e os outros seis que ele visitou – o do rei, o do vaidoso, o do beberrão, o do homem de negócios, o do lampião com o acendedor de lampiões e o do geógrafo. Mas, por enquanto, vamos pensar sobre essa aparente confusão entre asteroide e planeta.

Em dado momento, o autor explica que os planetas muito pequenos são chamados de asteroides e identificados com um número. Ou seja, em certo sentido, asteroides também são planetas, porém, de acordo com as dimensões, existe essa distinção, essa hierarquia que é quantitativa, numérica. Se, no decorrer da narrativa, essa distinção é deixada de lado, é interessante lembrar que o livro critica as “pessoas grandes” por se interessarem “apenas por números”. Portanto, tal crítica pode ser uma das razões para deixar de lado essa diferenciação “quantitativa”.

Aponto aqui outra questão. A Geografia é mencionada como um dos quatro interesses, juntamente com História, contas e gramática, que as pessoas grandes recomendaram ao narrador, quando ele tinha seis anos de idade; quando mostrou o segundo desenho que fez. Percebe-se uma ironia, pois, sendo o conhecimento geográfico – diretamente ligado à Astronomia – de tal importância, a ponto de fazer parte desse restrito grupo dos quatro que lhe foram recomendados, parece um erro imperdoável não distinguir asteroide de planeta.

Além disso, o narrador relata que, por “ter que” escolher outra profissão, porque seus dois desenhos não fizeram sucesso, aprendeu a pilotar aviões. Então, sem mencionar os outros três conhecimentos que lhe foram recomendados, deixando subentendido que não tiveram nenhuma importância, ele afirma que a Geografia muito lhe serviu, por ser útil “se a gente está perdido durante a noite”. Ou seja, subentende-se que a serventia ainda é bem limitada, pois, se não estiver perdido, ou se não for durante a noite, não faz diferença.

Depois, quando fala sobre o asteroide B-612, o narrador diz que o astrônomo turco que o descobriu não fora levado a sério quando o apresentou num congresso, por causa das roupas que usava. Tempos depois, vestido à moda europeia, fez novamente a apresentação e, desta vez, não foi questionado. Percebe-se o sarcasmo, colocando em dúvida a seriedade do assunto, como uma forma de contradizer aquela importância atribuída lá no início, pelas “pessoas grandes”.

Finalmente, podemos pensar sobre o geógrafo, habitante do último lugar (planeta? asteroide?) visitado pelo Menino Príncipe antes da Terra. Aliás, é o geógrafo que sugere a Terra como o próximo lugar a ser visitado, por ter “boa reputação”; e já neste ponto se percebe uma ironia, por não se referir a alguma importância real, mas à imagem, ao que aparenta ser. Além disso, o livro diz que o geógrafo habita um lugar “dez vezes mais amplo”, sem especificar mais amplo do que qual outro – possivelmente é uma maneira de indicar a importância dada à posição que ele ocupa.

Esse geógrafo escreve “enormes livros”, mas nem sabe dizer o que existe no seu próprio planeta (ou asteroide), porque é importante demais para sair de seu escritório. Ele nunca tem tempo de ir conhecer nada, por isso depende das informações dos “exploradores”. Mesmo assim, diz que as Geografias são os livros mais sérios de todos – porque, nelas, são registradas as coisas que não mudam.

         Sobre essa suposta confusão entre denominação de asteroide e planeta, entendendo que não é por acaso nem por displicência, é possível pensar que se trata da manifestação de um ponto de vista. Esse ponto de vista, reforçado em outros trechos que não foram citados aqui, claramente rejeita: a supervalorização das aparências; a supervalorização dos números, ou seja, da quantificação nos mais diversos aspectos, em detrimento de tantas outras questões importantes; a supervalorização de alguns conhecimentos em relação a outros; e a ideia de que “o que não muda” é, por isso, mais valioso do que algo menos duradouro.

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A continuar.